sábado, 28 de novembro de 2009



" SE AQUILO QUE A GENTE SENTE..." Disse, Augusto Gil, numa das suas "Quadras Soltas" esta sentida quadra que decorei há tantos anos que se perde no tempo, mas sem na altura ligar muito à profunda exteriorização do poeta. Só hoje, eu sinto essas palavras que se aconchegam cada vez mais na minha memória num conforto para a alma. E que penso, são quase donas da minha invenção. "Se aquilo que a gente sente/ cá dentro tivesse voz /toda a gente muita gente/ teria pena de nós."
Como os anos passam. Como tudo acontece tão de repente...Que pena de não ter agarrado a vida nos bons momentos que pensava eternizarem-se. O ontem tão distante do hoje mas, curiosamente, ligados pelos fios ténues da recordação, embora fortemente marcados na memória que o tempo não apaga. Mas tudo se esfuma como nuvem que passa...Se a vida é ai que mal soa. Sei que não chorei o que devia. Ou chorei tudo dentro de mim? Talvez não aos olhos de toda a gente. A dor carrega-se no silêncio e com o silêncio. "Se aquilo que a gente sente/Cá dentro tivesse voz..." Mas, também a solidão das noites nos compensa de alguma forma, sobretudo quando nos faz emigrar para as recordações que são passado feliz e que se anseia recordar sempre. É, ironicamente, um pouco do remédio que nos resta! Ou será este, outro flagelo que cruelmente nos surpreende? ...Longe, muito longe, está bem viva nos mosaicos da memória, toda a minha vida passada.Vida resplandescente, saudável, passeada nos jardins da minha juventude. E era assim coroada de uma suprema ingenuidade que o aconchego da família sustentava tão serenamente, nesse bom viver e nessa forma de estar. Nada me faltava e nada me faltou. Sempre. Mais tarde, o Amor, a dedicação, os cuidados redobrados, que a vida reserva nessa partilha a dois e que muitas vezes, o destino das surpresas, nos reserva. E, tudo aconteceu, tão de repente, nessa noite de verão. Foi no dia 24 de Agosto, em Alpedrinha. Era uma estância muito agradável e onde se juntava muita gente, vinda de todas as partes do país, para ali gozar as melhores e mais tranquilas férias na paz bendita da Serra. Esta, coberta da sua giesta em flor, parecia emoldurar-se nos nossos olhos como cenário único! Tal o seu encanto. E, era o dia e a noite que nos trazia os amigos a confraternização e os novos conhecimentos. Eram as noites mágicas dos passeios, dos bailes e dos encontros. Tudo era naturalmente belo como a paisagem que evidenciava a beleza da nossa juventude. A nossa liberdade, o nosso êxtase pela vida. Inanarrável a esta distãncia! E, como sempre, acontecendo as melhores e grandes surpresas. Foi numa noite de verão escaldante. O céu engrandecia-se com o brilho vivo de tantas estrelas. Era noite de baile. Por essa altura, iniciava-se o cortejo da entrada com alguma gala e circunstância. E, era gente grada de todas as redondezas que ali afluía. Do Fundão, da Covilhã, de Castelo Branco, entre outras. A realização de um baile circunstancial no final de Agosto era já uma tradição. Tinha lugar no Clube da simpática vila beirã. Eu, com os meus pais e irmãos, gozava naquela estância, já de tradição, os belos ares da Serra da Gardunha que acalmavam a vida agitada, passada um mês antes, na praia da Nazaré com toda a inquietude que as férias, nestas estâncias, proporcionam. ...Tocava uma valsa. O meu irmão mais velho, quis iniciar o baile comigo. As pessoas à volta olhavam-nos com admiração. Era jovem e bonita, o meu irmão jovem e garboso cadete da Escola do Exército. Outros pares se estrearam mas nós sempre na berlinda das atenções. E, foi nessa noite, que a minha vida iria ter outro rumo. A música não cessava de animar o ambiente, ora bem ritmada ora mais lenta, na volúpia dos pares apaixonados. Quanto a mim, embora com muitos pretendentes, confesso que não me tinha decidido verdadeiramente por nenhum. E, já tinha pares para quase toda a noite. Havia, naquela altura, a oportunidade de marcarmos as danças com os rapazes, o que chegasse em primeiro lugar tinha a primazia e por aí fora.E, eu lá disparava com alguma galanteria, sempre que pretendida, as frases para entreter...só para a 5ª música! A determinada altura da noite, chegam algumas famílias da cidade da Covilhã e da então, vila do Fundão que ali gozavam as suas férias. Aconteceu, que uma amiga, hoje minha cunhada, vem ter comigo para me comunicar que havia alguém no salão, ansioso por me ser apresentado. Primeiro, não liguei, mas pela insistência, tornei-me curiosa. E, eis-me à sua frente . Os nomes, os cumprimentos, um furtivo olhar, e o meu destino ali a ser traçado sem quase dar conta. Pouco tempo passou e já não me lembrava do seu nome. Ele, António Paulo, não se esqueceu do meu. E, chegando de novo junto de mim, pediu-me para dançar. Respondi-lhe que não, porque estava já comprometida para aquele momento e para o outro ...e outro... O quê? respondeu. Tenha paciência mas não pode ser como diz... Isso é muito tempo de espera e eu quero dançar já consigo. Portanto, descomprometa-se e mais ainda, vai ser o meu par para o resto da noite. Dizendo isto, com um sorriso que me conquistou. Mas a minha primeira impressão foi de surpresa. Eu, que comandava tudo a meu bel-prazer e sabia estar ou não estar com quem me agradava apenas, e a receber ordens! Confesso que passei da surpresa da graça autoritária ao consentimento. E, o que é certo é que acedi pela forma original do seu convite. O meu destino, feito dos meus sonhos burilados de encanto e de esperanças, estava traçado. Era médico na capital. Namoro breve de um ano, acentuado por imensas saudades, pelo facto de ter estado quatro longos meses no estrangeiro. Casámos um ano depois. Relembro que na altura em que estava para chegar a Lisboa, tínhamos ensaiado o nosso reencontro, através de uma correspondência quase diária, cheia de projectos e de grandes sonhos de amor. Dizia-me na sua escrita apaixonada que ao desembarcar, me afogaria com muitos beijos. Mas, na altura estava acompanhada da minha mãe, que juntamente com o seu pai, figura grada da Magistratura, na capital, o esperava também. Eu, uma romântica por excelência, já me via a correr para ele mal o avistasse. De facto, corremos um para o outro mas, ali ficámos extasiados com os olhos brilhantes de desejos incontidos para adoçarmos aquela separação!E foi apenas um beijo pueril que fez jus àquele momento. A liberdade do gesto e da acção retesada pelos valores fundamentais de então... Mas respeitavam-se. E, foi assim que a nossa vida se iniciou, estruturada num amor verdadeiro e para todo o sempre. Até ontem... Que felizes fomos! Eu era muito mimada e continuava a sonhar. O meu marido tinha mais uns anos do que eu mas tão jovem de espírito e de compreensão que sempre me encantou. Fazíamos um belo par. Tinha muito orgulho nele. Um pedaço de céu que me cabia. Dois anos passaram. Entretanto, o meu marido entusiasmado por colegas do então, Hospital do Ultramar, onde trabalhava e com alguns a pensar África, resolveu-se também a experimentar essa aventura. Os médicos eram mal pagos. Estávamos em começo de vida. E, depressa se deu resolução a esse novo percurso. Chorei como uma madalena por ter de deixar os meus pais e irmãos. Era e continuo a ser muito ligada à família, infelizmente agora mais reduzida. Partimos rumo a Moçambique. O nosso destino por um período de 17 anos! Recordo ainda a despedida. Tão presente estava. Apesar dos 19 dias de viagem a bordo. A sirene do navio, as serpentinas, ténues ligações a rasgarem-se no primeiro deslizar do navio e a música envolvente...Senti o coração apertado pelos acenos que ficaram no cais a transformarem-se cada vez mais em pontinhos brancos na distância. Até desaparecerem no horizonte. A viagem entre o mar e o céu tinha o condão de nos embalar e de fixarmos os olhos nessa fusão de azul infinito e das grandes causas. E dos grandes mistérios. E o amor superou tudo e todos. Muito embora ficassem as saudades. Connosco viajava o nosso primeiro filho, o Zé de um ano apenas. Percorremos Moçambique de Norte a Sul e lá vivemos e demos 17 anos das nossas vidas. Regressámos em 1974 a Portugal. Pelos motivos conhecidos. Recomeço de nova vida e a luta iniciou-se com toda a coragem e determinação. Como a que vivemos em África. Somente o clima o espaço e as pessoas eram diferentes. A solidariedade em terras do Índico era única! O António voltou ao seu trabalho no Hospital Egas Moniz e Centros de Saude, eu, a regressar à Faculdade para terminar o Curso de Românicas já iniciado, e a leccionar no Ensino Secundário concorrendo em mini-concursos. Fazia-me então companhia o meu filho mais velho que por essa altura entrava para a Faculdade de Direito. E foi uma nova luta que cada um se encarregou de levar a bom termo. Todos os outros três a acabar o Secundário e a continuar depois no Ensino Superior. Foi toda a nossa vida uma vida cheia de tudo. De bons e maus momentos. Preenchida de alegrias e de tristezas. De grandes preocupações e de momentos cheios de sol e de paz duradoura.Como todas as vidas. Afinal o percurso é sempre igual para todos, variando as nuances que experimentamos ou que a vida nos reserva enquanto por cá se caminha. Depois, a rotina dos dias transformados em meses, anos, sempre chegando ao sábado num fechar de olhos, e às épocas festivas, num suspiro, por aqueles que vão ficando no meio do caminho...E rolam os anos e rolam as vidas e tudo se precipita no caos da existência. Que dá para pensar quando chegamos ao outono da vida. E nos encontramos cada vez mais sós...Que lágrimas sustenta agora esta tão profunda e eterna saudade! A concentração de um tempo único feito de risos e de lágrimas. Para sempre relembrado.

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